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sábado, 25 de dezembro de 2010

Em Mais Uma Manhã

Duas figuras sentavam-se à mesa. Bebericavam café-com-leite de suas xícaras azuis e as pousavam de volta, sem conversar. As vezes olhavam pela janela: miravam as cores do céu nos primeiros minutos de uma manhã de quarta-feira. Comiam pão com determinada pressa; dali a pouco sairiam para trabalhar. Enquanto um concentrava-se na faca de serra que espalhava margarina dentro de um pão-francês, passos sonolentos no chão de madeira anunciava outro que chegava à mesa.
          O recém-chegado chama aqueles dois de pai e mãe. Um meio-sorriso daqueles sentados aparece como resposta. O barulho da cadeira arrastada salta pelo ar. Na imobilidade da cena, pode-se ouvir a mastigação de alguém, os goles de café do outro e o tique-taque sem volta do relógio na parede.
          A passada de mãos na cabeça do filho indica que é a mãe quem vai trabalhar primeiro. O abrir da porta deixa a rua invadir os ouvidos por alguns segundos. Os que ainda restam ali limpam suas bocas na toalha da mesa e saem. Um vai trabalhar e outro estudar. Caminham sem lembrar que só se verão novamente na manhã do outro dia. Vão em silêncio.

domingo, 19 de dezembro de 2010

No Silêncio do Mar

Quando as amarras foram soltas e o barco ganhou mar, houveram lágrimas. Moças apinhavam-se no porto acenando àqueles que partiam. A embarcação fez uma ligeira manobra e mirou o oceano, de braços abertos para o destino. Içadas as velas, uma lufada de ar encheu-as, fazendo o cordame se retesar. O capitão, olhando por sobre o convés, fitava a linha onde os azuis se tocavam. Lá em baixo, correndo sobre o piso de tábuas da embarcação, as crianças brincavam mudas. Homens e mulheres, que já se faziam sentados, olhavam para o chão. Aquela era mais uma busca; uma procura às cegas. Alguns, mais afoitos, já encaravam o capitão, como se esperando alguma instrução sobre o que fazer.
          Horas ou dias se passaram; os passageiros acordaram com o tranco leve do casco ao tocar um banco areia. Avistaram o que devia ser a manhã de uma praia cercada de palmeiras. Desceram um bote e foram conhecer o local. Chegando mais perto, notaram uma figura em pé na areia. Dirigiram-se para lá e distinguiram um senhor de barba muito preta e roupas bem engomadas parado ali. O capitão se aproximou e tentou perguntar que lugar era aquele, mas as palavras não saíram. Mesmo sem pergunta, houve uma resposta nos olhos rasos daquele homem, e quando todos souberam que ali era a paragem para os corações vaidosos, alguns caminharam para além das palmeiras. Aqueles que ficaram retornaram para o barco e levantaram âncora.
          Novamente lançados em viagem ao fim do mundo e tocados pela perda dos amigos na ilha, os remanescentes fitavam a água passar ligeira em pequenas ondas e explodir no bojo do navio. Ali viam seus sonhos que há muito haviam desaparecido e seus amores perdidos; assistiam tudo perder-se em espuma branca e no vento salino. Não era surpresa para o comandante que tantos atiravam-se em busca do passado. Mais alguns dias de viagem e eles veriam uma ilha de rochas negras. Era quase impossível chegar até ali, não fosse por uma pequena enseada que terminava em praia de pedriscos igualmente escuros. Foram até lá e encontraram uma mulher. Usava um longo vestido branco e era absurdamente bela. Estendeu as mãos, mostrando um caminho que subia até o topo da ilha. Era estreito e serpenteava o negro das rochas. Uma passagem desprovida de virtudes, mas que traria conquistas e riquezas. Na volta para o barco, o capitão olhou para trás e contemplou aqueles que já caminhavam pela vereda. Tentou um adeus, mas aquela não era hora para fraquezas.
           No mar, a ausência das vozes marcava a viagem. O capitão quase adormecia em sua cabine quando o Sol brilhou no horizonte. Estavam chegando, pensou. Correu para avisar aqueles que ainda restavam no navio, mas não foi preciso; todos já estavam de pé, tentando até mesmo um sorriso. Depois de tanta tristeza e cicatrizes, era difícil levantar os olhos. Mas, mesmo ainda longe, cada alma sentia que aquele era o lugar certo.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Nas Noites de Chuva

Chovia muito lá fora e ele não queria sair da cama. Os olhos miravam alguma coisa que não existia; muito além dali. Acordes de uma guitarra vinham de algum lugar nos anos 90 e faziam ondas pelo ar do quarto. I found you, you wanted me too... Uma parte dos seus pensamentos acompanhava a canção e a outra buscava por ela. Por que nos apegamos tanto a outras pessoas? Isso é o amor? Assim? Devastador? Questionava-se, com certeza.
          As mãos vasculhavam o passado, queriam aquela outra mão como companhia de volta. O coração queria o outro coração de volta. O corpo todo queria... O corpo todo...
          O rapaz notou que mexeu-se quando as músicas acabaram. Precisava de coragem; precisava de versos novos para um coração já conhecido... Buscou seu futuro nas cordas do violão de verniz trincado, perguntando a cada nota se teria aquela mulher mais uma vez. Elas responderam coisas tristes; verdades de dias passados. Repetiam os erros cometidos. Cantavam lágrimas. Então ele resolveu que melhor seria voltar para a cama. Deitou-se pela quarta vez naquela noite e outra música embalou os pensamentos.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mãos Frias, Mundo Frio

Quando o vento gelado correu rápido pela rua, espalhou papéis e arrepios. Uma figura alta olhava o mundo de seu apartamento no momento em que, do outro lado da rua, perto de um grande lixeiro, a embalagem de seu novo sofá rodopiou pelo ar revelando uma pessoa, de débil aparência, deitada. Lá em baixo, o cimento ficou ainda mais frio, acordando-a. Lá em cima, a figura então percebeu que as roupas que vestiam aquele corpo já foram suas; havia doado-as na campanha de Natal. A criança que não mais dormia - sim, percebeu que era uma criança - correu para buscar algo para se cobrir; no caminho vasculhou o lixeiro. Do apartamento, o vulto que ainda observava tudo notou quando o que sobrara de seu jantar apareceu carregado pelas pequenas mãos.
          No calor da residência algo aparece na tevê e o sujeito finalmente deixa a janela, pois o jogo de futebol está para começar. Quando o sofá rangeu com o peso e uma lata de cerveja espirrou, nem uma memória restava. Nada do que havia visto pulava para os olhos. Tudo seguia... Como sempre.